
domingo, 20 de junho de 2010
Fina Umbelina

sexta-feira, 11 de junho de 2010
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Fina Umbelina
Às vezes cheira-me a infância. Aos piqueniques em família, aos Natais e Páscoas felizes, às férias de verão quando ainda eram grandes…
Vêm-me à ideia imagens que ficaram gravadas em slides e que substituíram as memórias que guardava na cabeça. Aquela luz que era a da manhã e de outro tempo, na bancada da cozinha dos meus avós em Valongo dos Azeites, ainda hoje me lembro dela. Ao lado do meu primo, ele com um ar envergonhado, eu desafiadora, aquele laranja-de-cortinado-e-de-móvel-de-cozinha batido pelo sol, e o poético contra-luz procedido por uma das falsas sopas que, como todas as crianças, gostava de fazer, trazem-me à memória tudo o que tinha de bom a minha infância, a altura em que todos os que amava eram vivos. Como se todas essas memórias tivessem passado a memórias após a morte trágica, quase Tarantinesca, da minha avó: Umbelina de Lourdes.
Num porquinho amarelo de porcelana, juntava dinheiro para me dar às escondidas dos outros netos. Se calhava a estarem por perto no momento da despedida, o dinheiro lá era dividido por todos e com um gesto brusco, quase nos aleijava quando nos enfiava o dinheiro no bolso. Mas tinha também outras técnicas. Nas cartas em que me escrevia, dentro de um papel químico, guardava uma nota e avisava sempre na carta que me enviava dinheiro, não fosse alguém nos correios ficar com ele. Mas, como tudo isto se passava nas costas do meu avô, teve que deixar de me avisar porque ele, também nas costas da minha avó, lia as cartas. Ora como ela me mandava dinheiro às escondidas, passou a marcar as cartas com uma cruz, e assim eu saberia que era suposto encontrar um tesouro lá dentro. Claro que o meu avô sabia o que a cruz queria dizer… A última nota que recebi era de dois contos.
Dizia que tinha um nome fino, à francesa, até que, numa investida ao cartório de São João da Pesqueira, terra do homem com o maior bigode de Portugal conhecido até à data, descobri que aquele Lourdes não tinha o ou de que tanto se orgulhava. Fora apenas uma coisa de que se convenceu, não se sabe bem porquê, já que nem no bilhete de identidade tal nome aparecia. Descobri também que andou uma vida inteira a comemorar o seu aniversário dez dias depois do que devia e que também esta informação estava no bilhete de identidade. Foi preciso ir ao cartório para nos lembrarmos de confirmar todas estas informações, no documento que ela tinha em casa…
Sempre que me cheira a lareira, cheira-me à minha avó, quando chegava da terra com uma grande caixa de cartão cheia de uvas, azeite e jeropiga, tiradas do porta-bagagem da carreira de São João da Pesqueira, a terra do homem com o maior bigode de Portugal conhecido até à data. Vinha para Queluz, para a nossa casa, com o seu cabelinho acabado de arranjar, cheio de pequeninos caracóis e estranhos reflexos azulados. Vinha da terra para a cidade, onde viveu metade da sua vida e onde queria acabar depois de morta. Foi feita a sua vontade.
Há já uns tempos que não sonho com ela. Mas quando acontece, vem, como todos os meus mortos, passar umas férias a este mundo. Às vezes volta definitivamente e fica no ar a questão “então e não morre, nunca mais?”.
Esta foi a minha avó, durante 20 anos. Umbelina de Lurdes, nascida e morrida na terra, que estes olhos há-de comer.
Junho de 2010
Bom mas bom!
